Capoeira & Diplomacia: conflito e cooperação nas rodas



Brazil LAB, Princeton University.


Em 14 de fevereiro de 2019, o Brazil Lab da Universidade de Princeton recebeu Ernesto Batista Mané Júnior, membro do corpo diplomático do Itamaraty e Pesquisador Visitante "Science and Global Security Program" da Woodrow Wilson School, para uma palestra sobre o tema de "conflito e cooperação na capoeira e na diplomacia. A apresentação tomou com ponto de partida um artigo publicado por Ernesto Mané na Revista "Diplomacia e Humanidades". Como debatedor convidado formulei uma pequena intervenção que detalho a seguir. A apresentação de Ernesto Mané Júnior, assim como o debate posterior pode ser acessado na íntegra por meio deste link

Oi sim, sim, sim, 
Oi não, não, não. 
Canção da capoeira.

Como erguer uma diplomacia a partir de termos tão simples como a afirmação e a negação de algo? Um “sim” e um “não” que se repetem incessantemente pelas vozes na roda da capoeira. Uma prática de corpos em relação que também parecem repetir em movimentos a afirmação e a negação dos versos cantados. Das melodias e dos corpos, porém, Ernesto Mané sublinha metáforas e rituais para apresentar “a roda de capoeira como um espelho do ambiente estratégico internacional”. Neste simulacro em que os corpos na roda são análogos aos estados em relações de cooperação e conflito, existe sempre o risco da erosão das diferenças, por um lado, ou da individualidade extrema e dos riscos de autodestruição, por outro. Mas como sugerem as emblemáticas imagens da roda de capoeira e das mesas circulares na UN, as negociações são possíveis e, no caso da tradição brasileira, necessárias, posto que faria parte da “centenária tradição pacifista do povo brasileiro” estendida à sua consagração como prática diplomática. 

Mas, como nos ensina Ernesto Mané - ele mesmo um exímio praticante da ambiguidade construtiva em ambas rodas e complicadas negociações - retornemos uma vez mais à capoeira. Oi sim, sim, sim, oi não, não, não. Para além de compor o repertório infinito de canções usadas em cada jogo, estes versos contam também à sua maneira os conflitos da Segunda Guerra Mundial, posicionando o Brasil em contraposição ao Japão: “O Brasil disse que tem, o Japão disse que não, uma esquadra poderosa para brigar com os alemão”. Desta forma, as assimetrias da história alteram a sincronia ambígua e modelam a sinfonia das vozes do que imaginamos como tradição popular. Convido a partir deste exemplo, para mais uma rodada a reflexão de Ernesto Mané sobre a diplomacia brasileira e a capoeira como expressão cultural afro-brasileira. Qual o lugar da história na consolidação e transformação do que em sua fala se caracteriza como convergência entre isomorfismo do diplomata e do capoeirista? Em tendo um papel relevante, quais seriam os momentos decisivos para a conformação de ambos e de suas convergências?

Em segundo lugar, gostaria de chamar a atenção para a longa história do estado brasileiro, especialmente ao longo do século XX, em se aproximar da capoeira para constituir simulacros “populistas”. Devemos ter em mente que a prática da capoeira era desestabilizadora da ordem social no mundo colonial e imperial. A república inaugurada por um golpe militar em 1889 levou ao extremo a repressão, instituindo como crime a prática e como punição a deportação para a hoje paradisíaca ilha de Fernando de Noronha. Entendo Ernesto, salvo engano, que seria sob tal situação de marginalidade em relação ao Estado que a capoeira ganha as principais características formais e rituais descritas como o modelo diplomático descrito. O presidente que inaugura nossa ideia de populismo, Getúlio Vargas, descriminaliza a prática e a eleva à categoria de “esporte nacional”. Também gostaria de ouvi-lo mais sobre as implicações da capoeira como esporte e como símbolo para a diplomacia de Vargas - aquele que não sabia se diria sim ou não para os aliados e para o Eixo.

Por fim, queria indagar sobre a política diplomática brasileira hoje, que muitos descrevem como sujeita a uma alteração radical de orientação, jamais pensada desde o século XIX com o Barão do Rio Branco - patrono da diplomacia no Brasil. Entre o alinhamento inconteste às orientações de Washington e um alijamento de postos de relevância duramente conquistados, quais lições a capoeira pode ensinar aos diplomatas hoje? Se um delicado equilíbrio de violência e lhaneza, simpatia, parece constituir a base do capoeirista que modela sua fala - inspirado em alguma medida no ‘homem cordial’ de Sérgio Buarque de Holanda, o que ocorre com a irrupção do ‘homem bestial’ na esfera pública do Brasil, ávido por destruir as mediações e ampliar os conflitos? Existem analogias ou isomorfismos entre a diplomacia do ‘homem bestial’ e a capoeira? Ou a capoeira seguirá a orientação da ‘sociedade contra o estado’, contribuindo para o que a escritora Amefricana Conceição Evaristo chama de ‘aquilombamento do mundo’?

English version


Oi, yes, yes, yes.
Oi no, no, no. 
Chorus of a capoeira song.

How to build up a diplomacy departing from so simple words as the affirmation and negation of something? A ‘yes’ and a ‘no’ constantly repeated by the voices in a circle of capoeira - a roda de capoeira. A relational body practice that seems to repeat in movements the affirmation and negation listened through the songs. From these melodies and bodies, however, Ernesto Mané shed light over the metaphors and rituals to show up “a mirror of the international strategic environment”. We realize, for example, the ‘roda de capoeira’ as a simulacrum in which the bodies are similar to the States in international relations. On the one hand, there is a risk of excessive cooperation disintegrating the differences between nations and, on the other hand, an extreme individuality leading to war and mutual destruction. But, as suggested by the images of the “roda de capoeira” and the circular tables at the UN, negotiations are possible and needed, according to a brazilian diplomacy, “consistent to a century-old pacifist tradition of the Brazilian people”.

As we learned with Ernesto Mané - and he is an expert practitioner of the ‘constructive ambiguity’ in the capoeira and diplomatic negotiations - let’s go back once to the capoeira. Oi, yes, yes, yes, oi no, no, no. This song is part of an incalculable repertoire of capoeira songs and memories. In the case of this particular song, what follows is a short chronicle of the Second World War: “The Brazilian government said that he has, the Japanese government said that they do not has, a powerful ship squadron to fight against the Germans”. Therefore, the asymmetries of history modify the ambiguous synchrony and shapes a symphony of voices that we imagine as a popular tradition. From this perspective, I would like to invite Ernesto Mané to a new round of reflection about Brazilian diplomacy and the capoeira as an Afro-diasporic cultural expression. What is the role of history in the consolidation and transformation of the convergence between the diplomat and the capoeira? You can also add a note about the gender issues in both fields. If you consider history as important, what would be the key moments to the convergences between diplomacy and capoeira?

Second, I invite you to comment about the long term approach of the Brazilian state over the capoeira during the XX century to build up ‘populist’ simulacrums. Please, let’s not forget that capoeira was a sort of practice against the social and political order during the colony and the Brazilian Empire. The Republic inaugurated by a military coup in 1889 organized an extreme form of repression, defining capoeira as a crime and the punishment to practitioners were the deportation to a distant island in the northeast of the country. As I understood Ernesto, it was under that repression that capoeira shaped the main features you have described to a comparison with diplomacy. The president Getúlio Vargas decriminalized the capoeira in 1937 and, not by chance, he was the same who inaugurated our ‘populist’ era. Maybe it was not a coincidence that Getúlio Vargas was the first president to conceive capoeira as a ‘national sport’. So, I would like to hear you more about the implications of capoeira as sport and as a model of diplomacy in the Vargas era - he was the one who negotiated a yes or a no to the allies and the axis in the Second World War.

Finally, I want to ask you about the current brazilian diplomacy. As many have observed, there is a radical shift in the diplomatic orientation of Brazil today, maybe the most important mutation since the origins of this pacifist orientation under the guidance of Barão do Rio Branco - the patron of Brazilian diplomacy. Between the total alignment to the White House orientations and the loss of relevant positions hardly achieved along the decades by diplomats, what are the learning that comes from capoeira?
A ‘cordial man’ of Sérgio Buarque de Holanda book - with his fragile balance between violence and heartiness - looks like the model of the capoeirista you described. If that is so, what happens when a ‘bestial man’ irrupts in the public sphere of a formal democratic society? Compared to the ‘cordial man’, the bestial would operate only in a negative way, aiming to destroy mediation and to extend the conflicts. To mention a few examples, this new diplomacy would include the support to the US assassination of an iranian general in Iraque, the deportation of Brazilian non-documented inmigrants from the US and an almost war against Venezuela. Are there possible analogies or isomorphisms between the diplomacy of a bestial man and the capoeira? Or do you think that capoeira will follow an orientation ‘against the state’, nurturing what the Amefrican brazilian writer, Conceição Evaristo called, the marooning of the world (“aquilombamento do mundo”)?

Comentários

Postagens mais visitadas