Oxalá cresçam pitangas





"Laboratório da sobrevivência". Palavras de um dos habitantes de Luanda, às margens do Atlântico e da África, lugar de encontro e nascimento de uma Angola que parece se reconhecer ainda apenas num futuro possível. Jovens, mulheres, trabalhadores, pensadores, crianças passam pela câmera, ora em silêncio e posturas que são os próprios gestos da cidade incorporados, ora falando, cantando e rindo entre si e com aqueles que estão segurando a câmera.

"Oxalá cresçam as pitangas" é poesia de António Gonçalves vertida em imagens. O desejo do poeta era ver pitangas crescendo no papel, "como palavras IN CULTAS génese de saber". E assim, como a escrever informalidades com as imagens, o escritor Onjaki e as cineastas Kiluanje Liberdade e Inês Gonçalves conversam com pessoas pelas ruas da capital de Angola, que contam suas próprias histórias enlaçadas com cores e sons que mostram a cidade como um lugar único.

Convencional em sua forma de filmar ruas movimentadas, transportes coletivos, escolas e celebrações, os planos abertos se sucedem como mosaicos, mas também se enamoram dos corpos e dos rostos mostrados em pequenas sequências intervalares entre uma pessoa entrevistada e outra. "Intervalo o tempo" talvez, como no poema que nomeia o filme, em que personagens narram em silêncio sua existência.

Achille Mbembe chamou a atenção, certa vez, para o "Afropolitanismo", como fenômeno de uma modernidade específica de certas cidades africanas e que descreveria uma "estilistíca, uma estética e uma certa poética do mundo. É uma maneira de ser no mundo que recusa, por princípio, toda forma de identidade vitimizadora, o que não significa que ela não tenha consciência das injustiças e da violência que a lei do mundo infringiu a esse continente e a seus habitantes" (p. 70, Áskesis). Escrevendo a partir de sua vivência em Johanesburgo, África do Sul, Mbembe considera ainda outras cidades sob tal categoria, como Abidjan, na Costa do Marfim e Dacar, no Senegal. Seriam cidades em que as heranças raciais e coloniais se imbricam de maneira singular com a economia, a política e a cultura em escalas locais e globais.


Ao seguir as narrativas dos habitantes de Luanda, o sonho da nação como "comunidade imaginada" de destinos comuns e um passado compartilhado surge como fragmentos nas vozes de jovens, adultos e velhos. As doloridas feridas das guerras informam o movimento dos jovens rumo à capital e também os bairros e periferias cheios de pitanguinhas à crescer apenas na companhia um dos outros, enquanto os pais percorrem o centro da cidade em busca da sobrevivência. Num plano aberto e distante, muitos meninos e meninas a brincar entre si, se cuidando e se divertindo. Em outro, a jovem professora em frente à um quadro negro fixado em uma parede de barro explica a vontade de estudar das jovens e também das mulheres mais velhas, já com suas famílias formadas. A imbricação entre os tempos e os lugares cultiva amores e violências e faz o espectador se sentir familiar com o Afropolitanismo angolano.


Duas mulheres conversam em frente ao mar e à um grande barco sobre seus amores informais, chamados de "pesquisa". A música escolhida vem do outro lado do mar, um sonoro Pixinguinha à tocar "Carinhoso", pequena licença poética cruzando as ondas Afro-Atlânticas em uma cidade cheia de sons e estilos próprios, como o Kuduro e a Kizomba. As risadas e a cumplicidade entre ambas amigas parece encenada, como a própria mesa de plástico colocada na areia com um pano branco. Da composição aparentemente deslocada entre os planos médios, abertos e os close-ups, as duas mulheres seguem a conversar sem ligar para quem as filma. Filmam-se almas e matérias, sob ritmos de além e aquém mar. A "pesquisa" do amor não se detém. Nem nas dobras das conversas, nem sob a poesia no papel e menos ainda nas imagens que, oxalá, sigam crescendo.

Comentários

Postagens mais visitadas