Adeus, adeus... sempre mestre, e boa viagem!

 Dia 13 de novembro de 1981, dia partida de Mestre Pastinha.

Adeus, adeus... sempre mestre, e boa viagem!


Capoeira é tudo o que a boca come.
(Mestre Pastinha).
A fotografia foi tirada por volta de 1952, e situa Mestre Pastinha em uma situação liminar. Corria o mês de outubro daquele mesmo ano, quando as pessoas retratadas e algumas outras se reuniram no bairro de Brotas, Salvador, para fundar uma organização: o Centro Esportivo de Capoeira Angola (Ceca). O encontro teria ocorrido na casa de um dos participantes, localizada na Avenida Dom João VI, perto do Candeal. Em função de sua distância do centro de Salvador, e também por ter se originado a partir de fazendas, roças e engenhos, a localidade era ainda vista como uma área rural, ou “como uma cidade do interior”, segundo uma moradora. Para chegar ao bairro, saindo da Sé, tinha-se que tomar um bonde até a região do Mercado de Sete Portas, para então subir em outro veículo até o Candeal. Uma viagem que podia ser demorada.
Mestre Pastinha estava, então, com sessenta e três anos, e consolidava o terceiro e definitivo esforço de criação de uma instituição dedicada à capoeira. Era vagamente conhecido nas rodas de capoeira, e nem de longe tinha o prestígio de Mestre Bimba, criador da polêmica e exitosa capoeira regional. Também não angariava a fama de Mestre Waldemar, que havia construído um amigável barracão no bairro da Liberdade, onde recebia capoeiristas de toda cidade e também alguns intelectuais em busca das “tradições” negras e proletárias. Tampouco não havia conquistado a atenção do romancista Jorge Amado, nem do escultor Mário Cravo, ou do pintor Carybé, todos eles futuros admiradores. Apenas Pierre Verger fizera alguns registros efêmeros do Mestre e de seu grupo, em outro local – Matatu de Brotas –, por volta de 1949, mas foram tão fugazes que sequer receberam acréscimo de informação sobre o local ou a data.
Essa configuração seria alterada radicalmente a partir de 1955, época em que o capoeirista instala o Ceca no Pelourinho, região histórica de Salvador e alvo direto de ações da Prefeitura, que pretendia convertê-lo em um polo de atração turística. O comando do próprio Departmento de Turismo, recém-criado, esteve a cargo de um intelectual – o escritor Vasconcelos Maia. E já em meados da década de 1950, Vicente Ferreira Pastinha vai se convertendo em uma figura icônica, que seria transformado, na década seguinte, em um dos símbolos máximos da capoeira. Para alguns, o capoeirista também expressava a conduta exemplar do povo baiano: “mestre da capoeira de Angola e da cordialidade baiana, ser de alta civilização” (PASTINHA, 1964, [orelha do livro]), como o definiria Jorge Amado.
Mas gostaria de voltar mais uma vez à fotografia. O retrato dos cinco homens carrega suas ambivalência, permitindo iluminar aspectos importantes para a investigação aqui proposta. De maneira geral, pode-se dizer que essa é uma espécie de fotografia “oficial” da fundação do Ceca, possivelmente realizada em data próxima ao encontro que ratificou o estatuto da entidade, em 1 de outubro de 1952. O cenário sugere um pequeno e simples estúdio, pela aparente cortina ao fundo e o tapete escuro dando um ar de formalidade. Chama atenção, inicialmente, a diferença de posição entre os dois homens sentados e os demais em pé, mais atrás, demarcando uma clara hierarquia entre aqueles que parecem liderar o coletivo e os que o apoiam ou são, por assim dizer, representados. À frente, com uma postura mais firme e séria, vemos Paulo Santos Silva trajando camisa e gravata por baixo da camiseta. Silva era funcionário da Prefeitura de Salvador, e a pessoa em cuja casa seria realizada a reunião dos fundadores, além de ser responsável por redigir o estatuto aprovado por Pastinha e os outros capoeiristas. No documento, Silva consta como “idealizador e fundador” da organização, cabendo-lhe o lugar de presidente. Sentado do lado direito e de modo mais relaxado e sereno, temos a figura de Adolpho Galdino dos Santos, também trajando a dupla combinação de camisa e camiseta. O “Major Galdino”, como o chamavam, era funcionário do Corpo de Bombeiros e, nos quadros da entidade criada, seria seu “secretário geral”.
Na retaguarda, estão em pé, da esquerda para a direita, Vicente Ferreira Pastinha, Eugênio Soares da Costa e Ricardo Batista dos Santos. Aos dois últimos estaria reservado, nos quadros do Ceca, respectivamente, o papel de 2° secretário e 2° tesoureiro. Pouco se sabe deles, à exceção de Ricardo Batista dos Santos, que seria comerciário e, anos antes, teria desafiado Mestre Bimba para uma luta, quando este já era reconhecido campeão. O porte um pouco menor e menos vigoroso de Vicente Ferreira Pastinha constrasta com o dos outros capoeiristas ao seu lado, mais robustos e jovens. Por outro lado, ele aparenta uma senioridade que o aproxima dos dois homens sentados à sua frente. Na hierarquia de posições acordada pelo grupo, e inscrita no estatuto, Pastinha seria o vice-presidente do Ceca, embora, na imagem, esteja em pé, atrás do secretário-geral Adolpho Galdino.
O intrigante constraste das posições capturada pela fotografia em 1952 é expressivo das relações entre grupos sociais no subúrbio de Salvador e da criação de organizações culturais e comunitárias que se congregavam em torno de determinados elementos étnicos. A capoeira colocava em negociação sujeitos com experiências, formações e autoridades diversas. De um lado, permitia novas estratégias de integração, ascensão social e reconhecimento de saberes populares, desde que respeitadas as “boas condutas”, como preconizava o estatuto do Centro. De outro, reproduziam-se antigas e nasciam outras formas de hierarquia, fosse pelo apadrinhamento dessas organizações por funcionários públicos, representantes políticos ou letrados, fosse pelos limites que estes mesmos grupos estabeleciam sobre alguns desses saberes subalternos.
Um segundo aspecto que a imagem ressalta são as imaginações que essas pessoas mobilizavam para definir uma certa ordem da capoeira como manifestação cultural. A criação de uniformes para a prática e de um escudo com o símbolo do Centro, por exemplo, eram sinais de que “alguma coisa estava dentro da ordem”, para adotarmos de maneira inversa e provinciana o verso da canção de Caetano Veloso. A própria fotografia, com os membros da diretoria da nova entidade, pode representar outro traço inequívoco de uma imaginação compartilhada, cuja síntese se faria presente em uma das frases iniciais do estatuto: “[...] a base fundamental do nosso centro é a boa conduta. Educação social, solidariedade humana e sobretudo a prática do bem, não usando a arma poderosa que é a Capoeira a não ser em legítima defesa ou em função da pátria”. Porém, outras tensões e conflitos emergem desta aparente concordância que, na fotografia, também se observa.
Na imagem, a principal dissonância que chama nossa atenção é a presença deslocada e o olhar ambíguo de Vicente Ferreira Pastinha. Como deixa claro, em escritos posteriores, para o Mestre, a data de surgimento do Ceca guarda relação com um evento ocorrido no ano de 1941, no bairro da Liberdade. Além disso, antes de formalizar juridicamente a organização, ele já havia vivenciado outras tentativas e sofrido alguns reveses, como em 1945, quando ficou por algum tempo no Centro Operário da Bahia. Assim, o ato de fundação e a liderança de Paulo Santos Silva poderia ser motivo, no mínimo, de certo desconforto, possivelmente maior quando ele, Pastinha, foi nomeado vice-presidente e viu-se, literalmente, colocado no fundo da imagem oficial. No entanto, ele permanece na imagem, em pé e com expressão firme. O Mestre já sabia bem, a essa altura, como levar adiante alianças com certos grupos da sociedade baiana, e esta poderia ser mais uma etapa em que ele, talvez, fizesse uso da sua flexibilidade – da sua “ginga” – em face de uma certa correlação de forças que lhe era desfavoráveis.
Por fim, temos o olhar de Vicente Ferreira Pastinha e seus singulares sapatos claros. A roupa predileta do Mestre era um conjunto composto de terno, camisa e calça branca, que ele costumava usar em várias ocasiões e que ainda hoje se encontra preservado no acervo do Museu Afro-Brasileiro de Salvador. Não temos como afirmar se ele pretendia vestir traje semelhante durante a sessão que culminou com essa fotografia. O certo, porém, é que o sapato foi escolhido para outro tipo de combinação. Seria este um pequeno signo de resistência em uma sociedade tão marcada pelo que se usa nos pés? Seu olhar, de outro lado, parece contido e, arriscaríamos afirmar, amargo. Com mais de sessenta anos, e na terceira tentativa de erguer o Centro, o velho capoeirista se vê deslocado na representação visual e sua expressão, a direção de seus olhos parecem manifestar um ressentimento que poderia ser a contrapartida dos acordos realizados e das condutas sociais esperadas pela “civilidade bahiana”. Não haveria, portanto, nem submissão plena, tampouco negociação livre de constrangimentos. Na postura assumida por Pastinha, os extremos dos pés e da cabeça marcam sua individualidade. Deixam “vazar” a ordem pactuada, ao mesmo tempo em que a sustentam – como num jogo de capoeira, em que os pés e a cabeça são os eixos dos deslocamentos de si e dos embates com um outro; “Oi sim, sim, sim....oi não, não, não”, como diriam as vozes na roda sob a política do berimbau.
Da introdução de Acuña, Mauricio. Maestrias de Mestre Pastinha, o intelectual da cidade gingada.

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