Marielle não volta pra casa
Mauricio Acuña
Mataram minha mãe e mais 46 mil eleitores!
Nós seremos resistência por que você foi luta!
Te amo!
Luyara Santos
Onde estará Marielle?
É
a pergunta no peito de muitas e muitos desde ontem, quando receberam a
informação de sua violenta morte em uma das ruas do Rio de
Janeiro, repentinamente transformada em campo de guerra. Campo de guerra não,
de extermínio. A mãe preta, a mãe favelada, a mãe da quebrada que virou autoridade pública.
Era o quarto de despejo em digno contra-ataque. Mas
Marielle Franco, essa estranha combinação de cor, classe e gênero tão
inesperada nos palcos dos Donos
do Poder foi exterminada em nove disparos. A bala
não era de festim e não havia dublê naquele território em que a Rede Globo inventa tantas ficções em seus
jornais impressos, radiofônicos ou televisionados. A guerra civil carioca,
tantas vezes anunciada pela emissora por meio de seus pálidos apresentadores
ganhou, outra vez, sua cor mais comum: a cor preta.
E muitas foram dormir se
perguntando: onde estará Marielle?
Não
sonharam com ela, mas queriam ter acordado com seus sonhos. Assim, era triste a manhã e a
pergunta seguia rondando com as novas notícias que chegavam sobre o caso. Pela
fotografia do jornal, Marielle parecia mais jovem que a idade anunciada. Uma
tristeza brasileira deve ter descido pela garganta seca de muitas quando
souberam que ela tinha uma filha, nascida de uma gravidez que se parece também
com tantas outras já ouvidas ou imaginadas. Talvez seja uma espécie de
patriotismo às avessas, mas no Brasil estamos aprendendo a ser tristes de uma
maneira única, algum tipo de unidade emocional que nos irmana tragicamente na
raiva e na indignação de mais uma morte como a de Marielle.
No
meio da manhã, pensando onde estaria Marielle, eram muitos os órfãos, como
filhos e filhas, sentindo um pouco - mesmo que de longe - a dor imensa da filha
da mãe preta, vereadora da cidade maravilhosa. Doía ser filha e filho de
Marielle, e quantos não devem ter lembrado do medo de outras mães, que ao sair
para trabalhar levavam consigo a dúvida do retorno. Mas, entre inconformadas e
resignadas elas iam - e vão - todos os dias correr o risco. Muitas conseguem
voltar.
Mas Marielle não voltou. Onde
estará Marielle?
A
manhã já ia se acabando com todas as redes sociais e mídias explodindo em informações e homenagens, mas a cada reportagem e
fotografia, a pergunta seguia batendo como um coração de sangue escuro. Muitas
filhas, irmãs, mães, amigas, partidárias, trabalhadoras iam
se juntando no espaço público - um dos lugares onde os corpos negros
e femininos ficam mais expostos e vulneráveis. Era de se crer que Marielle
estava em todas as partes, dentro e fora das casas, e gritando alto: Presente!!
Mas não era, mesmo que lá estivessem por ela e para ela, todas as mulheres do
mundo, brancas, pretas, morenas, jovens e velhas. Todas dispostas a receber
tantos tiros quanto os que ela recebeu, tantos palavrões quanto os que lhe
foram lançados, tantas acusações quanto as que teve que ouvir. Mas nada naquela
quantidade de imagens e textos retirava a força da pergunta.
Onde estará Marielle?
Para
todos nós - sem resposta no início da tarde que começava sem Marielle, e ainda
pensando na dor de sua filha e aguentando como se podia tal dor - uma música
maternal queria ecoar ao longe, descendo da memória à garganta, para embalar
esse sentimento vago de ser tristemente brasileiro em dias como hoje. Não era
em português, mas acalentou infâncias em muitas línguas. Era a voz de Mercedes
Sosa, mãe de todo um continente, ecoando antigas canções camponesas
da América Latina para crianças ansiosas por suas mães trabalhadoras que
tardavam - e ainda tardam - em voltar para a casa. Uma canção ouvida e
registrada em algum ponto das fronteiras caribenhas da Venezuela e Colômbia no
século XX, mas gestada muito tempo antes nos cumbes
e quilombos,
lugares de invenção da liberdade. A história das mães que saem para trabalhar e se demoram, ou
que não voltam, é do tamanho da América. E sem perceber, no começo da tarde
cinza e sem Marielle, alguns queriam cantar, então, para a sua filha, essa irmã
brasileira que, talvez, em algum momento antes de saber da morte da mãe, já se
perguntava: Onde ela está? Que horas ela volta?
E
ainda agora, passadas tantas horas, quem ainda canta alto para todas nós é
Mercedes Sosa, essa outra grande mãe. Canta forte para ti Luyara Santos. Canta
alto para os 46 mil que morreram com nove tiros. Canta para todas e todos nós,
num triste Brasil, embalando a saudades de hoje e a luta de amanhã, com alguma
esperança e acordes de sonho:
Que tu mama está en el campo,
negrita...
Trabajando, Trabajando
duramente, (Trabajando sí)
Trabajando y va de luto,
(Trabajando sí) (...)
Te va traer muchas cosas para
ti...
E
Marielle, ainda assim, naquele começo de tarde, não estava. Não está. Marielle
não volta para a casa.
“Rest in power Marielle”. Fonte: Medium
"no Brasil estamos aprendendo a ser tristes de uma maneira única" América Latina toda se hermana siempre en la tristeza. Muchas gracias por el texto. Abrazo.
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