A capoeira é recurso na educação (Nexo Políticas Públicas, 09 de maio de 2021)

 





Menino quem foi seu mestre? 
Canção de capoeira 

Muito incomoda à população e especialistas em educação os baixos índices alcançados pelo Brasil nos rankings internacionais de educação como o Pisa. Um sentimento de inferioridade nos inunda sempre que vemos o país estacionado ou caindo pelas tabelas, como a atual 60° posição entre 79 nações. Mas podemos deixar de lado, ao menos por um instante, o nosso persistente complexo de vira-latas para observar como jogamos na lata de lixo do ensino uma das mais importantes expressões de nossa excelência cultural: a capoeira. 

A história é antiga como cantam as canções e contam os mestres: Brasil colônia, tráfico transatlântico, violência e exploração de milhões de homens e mulheres cujos descendentes vivem em nós e entre nós. Ou viviam, como o Mestre Moa do Katendê, brutalmente assassinado pela violência política dos dias atuais. Criminalizada ao lado de outras manifestações como o samba e o candomblé, a capoeira foi por longo tempo sinônimo de crime, gangue e vagabundagem. Nada mais distante do que se via e que ainda se entende por educação: aprender a ler, escrever e a fazer contas, nada mais, segundo o atual presidente e seguidores. Corpos sentados, em ordem homogênea numa sala, em silêncio e sob o olhar estrito de uma professora. Quantos de vocês que leem este texto não pensam assim, lembrando das próprias experiências e do quanto aprendeu com aquele educador duro, bravo e exigente. Facilmente vêm à minha mente a professora de português e os exercícios de repetição na escola pública em que estudei. Tanta reverência ao terror pedagógico não nos permitiu alcançar nenhum degrau mais razoável nas competências exigidas pelo mundo de hoje, mas alguns saudosos reclamam sua falta num país que tolera o chicote há tantos séculos, de preferência nas costas dos outros e das outras. 

Mas o que pode a capoeira nos proporcionar como recurso na educação em meio a tantas demandas de habilidades para sermos cidadãs e profissionais no Brasil e no mundo? 

Primeiro temos que reconhecer o que já foi feito. Ao longo do século 20, e sob a repressão da polícia e a tutela do estado, os capoeiristas foram mestres na construção de uma verdadeira rede de organizações de ensino que se disseminou pelo país. Jorge Amado, o brasileiro que talvez tenha chegado mais próximo de receber um Prêmio Nobel, chamou certa vez uma dessas escolas de capoeira de “Universidade Popular,” onde trabalhadores cansados da exploração cotidiana chegavam pela noite para se exercitar e aprender com os mais velhos. 

Ainda na primeira metade do século 20, especialistas em formação militar já procuravam criar métodos de ensino da capoeira para incorporá-la nos quadros das forças policiais 1 2. A década de 1960 viria com mais um golpe militar e, logo em seguida, a capoeira seria convocada para treinamentos de soldados na Polícia Militar 1. Após a redemocratização e com a grande força dos movimentos populares de então, em particular dos movimentos negros, a capoeira voltaria a ser debatida como recurso para o ensino. Mas apenas recentemente o ensino de capoeira vem se estabelecendo como parte de disciplinas escolares, tais como educação física. Aprovada em 2003, a lei n. 10.639 que orienta o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana é um dos passos positivos alcançados pelos educadores e gestores, embora o atual governo federal se mostre disposto a sabotá-la. Tal legislação fortalece também o ensino da capoeira em outras disciplinas, como história, português, geografia e com isso, a ampliação do repertório de competências e a formação das estudantes.

A difícil incorporação da capoeira na escola também se deve, em parte, a mestres e grupos que, divididos entre si e sob uma condição de competição pelos miseráveis recursos do estado, também retardaram iniciativas. Mas o principal motivo ainda é o racismo estrutural que acompanha a história da capoeira, esta sempre evocando orgulhosamente suas heranças africanas cultivadas em solo brasileiro. O racismo estrutural que ainda dá rasteiras e derruba a capoeira de nossas escolas é uma combinação do preconceito que persiste, com o desprezo ou exotismo promovido pelos jornais ao longo de décadas, a formação eurocêntrica e a falta de vontade de muitos gestores da educação em incorporar tal saber nas suas diretrizes. Soterrados pelos índices comparativos, muitos especialistas discutem em salas com ar condicionado o que fazer para nos tirar da lata de lixo da educação. 

Mas bem perto da sala certamente existem corpos suados, gingando ao som de um berimbau e acompanhado de vozes que cantam em coro e resposta: “vem jogar mais eu, vem jogar mais eu mano meu.” Os professores de português talvez fiquem abalados em descobrir que assim, com “erros”, cantam as capoeiristas em rodas no Brasil e nos mais de 150 países em que está presente. Eles e elas distribuem e difundem o “pretuguês” generoso que Lélia Gonzalez entendeu e que escritores como Oswald de Andrade, dedicaram poesias. Elas e eles convidam estrangeiros a virem ao Brasil ou a estudar português em locais tão distantes como Washington e Dakar. Incitam muitos outros a estudar a história dos homens e mulheres que escreveram com seus corpos e imaginações parte da história do Brasil. Mas, por que então, quando se fala no ensino de capoeira nas escolas, apenas a educação física é mencionada? Possivelmente pela mesma razão limitadora que obriga as escolas a contratar profissionais com título superior para ensinar às crianças, enquanto milhares de mestres de capoeira com notório saber vivem precariamente. Alguns deles já receberam até título de doutor honoris causa em universidades nos Estados Unidos, como Mestre João Grande, ou no Brasil, como o Mestre João Pequeno de Pastinha. 

Mas por que as mãos que batem palmas para os mestres reconhecidos não têm a mesma energia para movê-las em favor de incorporar a capoeira e os seus mestres em nossa educação? Até quando professores, diretores, e gestores seguirão revirando os nossos saberes apenas na lata de lixo da história? 

Mauricio Acuña é doutorando em literatura e cultura pela Universidade de Princeton, onde participa do Brazil LAB. Mestre e doutor em antropologia pela USP (Universidade de São Paulo), é também praticante de capoeira angola. Seus estudos estão focados em questões raciais, diásporas africanas e estudos da performance. É autor do livro “A ginga da nação: intelectuais na capoeira e capoeiristas intelectuais” e coorganizador da obra “Marcadores sociais das diferenças: fluxos, trânsitos e intersecções”. Atualmente investiga o Primeiro Festival Mundial de Artes Negras 

Link para matéria: https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2021/A-capoeira-%C3%A9-recurso-na-educa%C3%A7%C3%A3o

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