Das cinzas do tempo e da utopia

Donde estés, si es que estás, si estás llegando
Será triste que no exista Dios,
Campo de Marte, São Paulo.
Pero habrá otros, claro que habrá otros,
Dignos de recibirte…
Mario Benedetti











Esta poesia de Mario Benedetti sempre acode em minha memória quando certas pessoas que admiro morrem. Assim, na noite da última quarta-feira de muitas cinzas, sem ainda sequer compreender a perda de Eduardo Campos, homem público de promessas na vida política de um futuro próximo, fulmina a notícia da perda de Nicolau Sevcenko. Na manhã se esvaneceu entre destroços uma nova possibilidade política e nem bem anoiteceu, parou o coração do homem de ciência.
O professor de história da cultura que causava alvoroço entre os estudantes de graduação da minha geração ecoava entre os corredores de todos os cursos das humanidades da Universidade de São Paulo – e quiçá de outras áreas – como uma verdadeira inspiração acadêmica. Nunca cheguei a fazer um curso com ele, acompanhando apenas seus escritos e palestras, mas por vários amigos recebi o brilho de sua imaginação e o impacto de seu talento. Desde amigos que seguiram a vida acadêmica e foram por ele orientados àqueles que seguiram outras profissões, mas que durante um semestre tornaram-se historiadores, seguindo pistas e construindo ensaios dos quais se orgulharam como sendo dos mais prazerosos e interessantes que escreveram.
Pode um historiador, seguindo as pistas de muitos passados, fazer-nos sonhar com futuros improváveis? Historiar o futuro por meio do passado era o que a inspiração de Sevcenko motivava em livros como Orfeu Extático na Metrópole.
Da última vez que o vi, numa memorável, algo confusa e genial palestra na Universidade de Princeton, Sevcenko parecia querer abrir novamente os horizontes da utopia, a possibilidade do sonho, trazendo à luz conexões complexas entre ciência e política no século XX, transitando entre as formigas que geraram modelos matemáticos de comportamento de massa e seus usos para a "matrixização" das relações humanas ou para os sonhos de liberdade. Essa última história ouvida começava nas academias europeias e americanas, nas mais variadas disciplinas das exatas, biológicas e humanas e tinha consequências imperiais em vários países, um dos quais, o longínquo Chile da Unidade Popular de Salvador Allende. Era para lá que ele dirigia o grand finale de sua história, em meio aos complexos desenvolvimentos da ciência de ponta e suas apropriações pelos homens da política. Parece ter sido ali, depois da cordilheira, nos tempos que os ventos de revolução varriam o pequeno país para o centro da história, que Sevcenko entrevia uma possibilidade inimaginável de uso das tecnologias de planejamento e organização para a liberdade humana.
Verdadeira utopia que chegaria até nós naquela tarde em Princeton, se o tempo, malandro tempo acadêmico, não tivesse se esgotado calando sua elétrica exposição. Utopia insondável que deveria chegar a mais pessoas pelo livro que escrevia sobre o assunto.  
Mas que a cinza, cinza do tempo e das utopias levou para longe de todos nós, da ciência, da política, das vocações. Fica a consternação, mas, principalmente, a história e estórias dessa utopia chamada Nicolau Sevcenko.


Comentários

Postagens mais visitadas